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Juan Esteves

onde jaz meu céu estrelado, por Juan Esteves.

Resenha crítica do livro, por Juan Esteves.

Em um primeiro momento, Onde jaz meu céu estrelado ( Fotô Editorial, 2020) de Juliana Jacyntho, fluminense radicada em São Paulo, parece emergir dos acordes existencialistas do romance Suna no Onna (A mulher da Areia), de 1962, do genial escritor japonês Kôbô Abe (1924-1993) transformado em filme em 1964 pelo cineasta Hiroshi Teshigahara (1927-2001) brilhante autor da vanguarda do cinema novo japonês, onde um homem e uma mulher se encontram sob as dunas em uma relação conduzida pelo estranho ambiente, manifestada em imagens sobrepostas e líricas em um fluxo ininterrupto e poderoso.

O plot do romance exprime uma metáfora habilmente narrada onde a areia é a própria vida, um instrumento que avança absorvendo as coisas e os seres, envolvendo-os em um manto de esquecimento, uma parábola sobre o conflito humano ao lidar com os próprios limites. Não se assuste o leitor, porque as fotografias de Juliana Jacyntho estão distantes da narrativa surreal e dramática do premiado escritor, mas tratam também do ocaso de um lugar e suas relações existenciais, com “Histórias de um mar que avança e engole.” como escrevem os editores da publicação, os paulistas Fabiana Bruno e Eder Chiodetto.

Onde jaz meu céu estrelado traz à superfície nostalgias extraídas da interioridade da autora, uma relação complexa embora acessível ao leitor. “Histórias de um lugar que fazia sentir o vento, o prazer e o desejo”, continuam os editores. Um lugar melancólico como aquele de outro filme, Casa de Areia, de 2005, dirigido pelo carioca Andrucha Waddington, onde o marido, a mulher e sua mãe assistem seu sonho acabar em um lugar inóspito, sendo coberto pela areia. Com sonhos diferentes em Onde jaz meu céu estrelado, a fotógrafa Juliana Jacyntho trata com muita delicadeza e sensibilidade da sua lembrança veraz, ou como ela diz, de certas “arqueologias de sensações soterradas.”

Não é somente um livro mas dois interpostos. Apesar do design recorrente em fotolivros atuais, apresenta uma certa função de levar o leitor a formatar sua própria narrativa ao conjugar as diferentes páginas, além da sequência corriqueira. As duas partes não tem atribuições distintas mas funcionam como uma abstração lúdica que contrapõe-se à melancolia erguida pelo título, ainda que este não seja sombreado como sugere. Pelo contrário, traz uma narrativa de uma perda mas também de um recomeço, ou melhor uma retomada da autora com si mesmo através de um resgate e ressignificação de imagens.

Tendo como fio condutor fragmentos de azulejos - a nos remeter aos trabalhos da carioca Adriana Varejão, cujo elemento essencial em sua série Mares e Azulejos, era coletar estilhas da história através dos mesmos e dos artistas ingleses Boyle Family , grupo capitaneado por Mark Boyle e Joan Hills e seus filhos, que já na década de 1960 buscava registros aleatórios destas placas cerâmicas em diferentes lugares do mundo - Juliana Jacyntho, se dispõe a “quebrar uma barreira pessoal” como ela mesmo me conta, através de uma narrativa que busca reconstruir em seu imaginário algo que deixou após os últimos momentos com seu avô, acontecidos em 1999, quando ela deixa o Brasil rumo ao Canadá sem saber que não o veria mais.

Os azulejos , segundo a fotógrafa, estão presentes desde a infância, quando passava férias na casa dos avós em Atafona, distrito de São João da Barra, no norte fluminense, onde a paisagem natural é a “transgressão marinha”, nome técnico pra o processo geológico do avanço do mar em direção ao continente, que acontece no lugar desde a década de 1950. A invasão já ocupou muitas ruas paralelas à praia, sendo potencializada pela erosão do rio Paraiba do sul por conta do assoreamento deste trazido pela poluição industrial.

Embora tenha começado a fotografar já no final dos anos 1980 até o final da década seguinte, quando ela conta que “houve uma interrupção na "harmonia familiar” pela sua saída do país e a morte do avô, o processo que culminou no livro teve início em 2016 quando ela finalmente lida com uma espécie de deslocamento temporal a partir dos acontecimentos e a retomada da indagação da perda através da fotografia, compartilhada com sua orientadora Fabiana Bruno, pesquisadora dos domínios da imagem e da fotografia.

Como encartes nas fotografias, os azulejos se sobrepõem às imagens marinhas e das dunas nesta espécie de arqueologia, como assumem os editores: “Cicatrizes, paixões e fragmentos de ser no vasto espaço-tempo.” que por sua vez vão de encontro a paisagens oníricas e mágicas que resultavam em passagens imagéticas. “As tentativas fotográficas da artista visual pré-definidas, no entanto, acumulavam impressões difusas sobre o lugar. Fotografias recusavam-se ao perene.” continuam Bruno e Chiodetto.

Assim como na obra de Adriana Varejão onde azulejos preenchem lacunas históricas, nas imagens de Juliana Jacyntho eles abrandam suas angústias mais íntimas, rompendo finalmente com seu luto deslocado. Ela transforma sentimentos inefáveis em sutis percepções. Como ela mesmo diz, “ voltei a ter contato com uma história particular e localizada, através de uma narrativa poética, mas transgredindo um sentimento, dor virando poesia.”

A alternância das páginas que podem ser soprepostas de um conjunto para o outro, é "um recurso pra criar a ficção de um mar avançando na direção de quem está lendo, a sensação da violência do avanço do mar, potencializando a narrativa…“ conta a autora. Uma alegoria à existência encerrada em um universo dominado pela obsessiva presença da areia e o ritmo de seu constante movimento; um mundo em que a única realidade é matéria, mas que só pode ser apreendida por meio da subjetividade das emoções.

Ao não prescindir destas, a autora toca nas contradições inseridas nos paradigmas ocidentais sobre o rompimento dos obstáculos psicológicos como sugere o sociólogo e antropólogo francês Edgar Morin. Inclusive, esta interpretação aproxima-se do filósofo alemão Martin Heidegger (1889-1976) e suas razões existencialistas, o círculo dos afetos, desejos e preocupações, onde percebemos que a narrativa da autora se mostra relacionada.

Mas, como preferem os editores, a artista visual "descobria que seu trabalho documentava sem documentar” recorrendo a outro pensador francês, o filósofo George Didi-Huberman "onde nunca poderemos dizer: não há nada para ver, não há mais nada para ver" quando eles pensam que “o mar havia levado parte das memórias, mas estranhamente para a artista, o mar também estava lá carregando uma parte de todos nós.” [ leia aqui review sobre o livro Imagens-Ocasiões ( Fotô Editorial, 2017) em https://blogdojuanesteves.tumblr.com/post/170575587911/fil%C3%B3sofo-e-historiador-da-arte-georges ].

Corre a lenda, me conta Juliana Jacyntho, que o mar está tomando o lugar que era seu em Atafona ( palavra que significa um moinho manual ou por cavalgaduras). Uma região que por suas narrativas lembra os povoados criados por ficcionistas. Antiga aldeia e porto de pescadores, depois de aterrado, virou um balneário populoso, principalmente para as pessoas de Campos de Goitacazes, onde nasceu a autora, paragem que em seu ocaso, está voltando as suas origens naturais.

Ainda com os editores lembrando de Didi-Huberman, um dos pensadores diletos da aludida contemporaneidade fotográfica, “olhar as coisas do ponto de vista arqueológico é comparar o que vemos no presente, o que sobreviveu, com o que sabemos ter desaparecido.” Entretanto, acrescento que Onde jaz meu céu estrelado traz mais ficção à uma história real, a lembrar das cidades e suas transformações imaginárias na obra do colombiano García Márquez (1927-2014) e do italiano, nascido em Cuba, Italo Calvino (1923-1985) sacramentando, mais uma vez, essa radiante e permanente argumentação do que é concreto ou real na fotografia. O título é uma remissão ao tempo em que não havia energia elétrica no lugar, permitindo assim a poética leitura do firmamento e suas inúmeras alegorias.

Em sua reconstrução pessoal, a autora nos faz um convite a imaginar a paisagem destruída, nos proporcionando leituras nas entrelinhas. A narrativa vai além da fotografia em si mesma e ao propor outras soluções, como as sobreposições em preto e branco entre os azulejos, Jacyntho almeja transferir ao leitor “fissuras de imaginação”, layers que rompem com a monotonia imposta pela areia e o mar em sua interpretação, bem como a percepção mais sensorial ao reproduzir o padrão das toalhas de plástico originais do lugar em um papel mais rugoso, como o Masterblank Linho (impresso pela Margraf), que acompanha o interior em Polen Bold, fosco a nos sugerir o apagamento do tempo.

Juliana Jacyntho nesta sua estréia nos coloca diante da hipótese platônica de uma memória pensada em dois tempos, o desejo de acompanhar a trajetória do ser humano e as suas reminiscências. A relação do primeiro com a percepção move a sua problematização propondo o distanciamento que o esforço da memória pressupõe à recriação da experiência histórica original. Seus diferentes depoimentos resultam da combinação de impulsos que evocam os estatutos filosóficos e estéticos contemporâneos e as investigações que a autora compartilha com o leitor. A inexorável sedução da tentativa de transcrever emoções e vivências através da arte.

Imagens © Juliana Jacyntho Texto : Juan Esteves



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