Resumo Neste texto propõe-se uma leitura do fotolivro ‘Onde Jaz meu céu estrelado’ (Fotô Editorial, 2020), de Juliana Jacyntho, a partir dos conceitos de inventário e colecionismo, percebendo como essas práticas estão relacionadas com o fazer fotográfico. A construção da obra parte da reunião de pequenos fragmentos imateriais e materiais de memórias da autora, que busca reconstruir uma paisagem que muda constantemente com a ação do mar e do tempo.
O surgimento da fotografia inaugurou uma nova era no colecionismo de visualidades, algo que foi prontamente reconhecido por Henri Fox Talbot (1800-1877) já em seus primeiros escritos. Dentre as inúmeras possibilidades de aplicação da nova tecnologia, a fotografia serviu de maneira imediata não apenas à ciência, mas também à criação da identidade burguesa e aos propósitos colonialistas que embasaram as expedições científicas da época. Por outro lado, numa escala mais íntima, a fotografia permitiu também a constituição de inventários pessoais, que buscam dar conta de pequenas histórias presentes em objetos e paisagens, remontando memórias e reconstituindo fraturas em espaços afetivos. O significado da palavra inventariar aponta para o ato de catalogar, classificar e listar. Quando entendida como prática, a ação está muito próxima das estratégias usadas pelos colecionadores, no gesto de recolher fragmentos e peças e propor uma nova ordem dentro de seus domínios.
Para Walter Benjamin (1892-1940), muito mais do que encerrar uma temporalidade histórica, os colecionadores tornam-se intérpretes do destino de determinados elementos (BENJAMIN, 1987, p. 228). Criam, por meio de suas escolhas, uma outra interpretação da história e deixam, como legado, uma herança carregada de intenções, selando os destinos de objetos e produtos da cultura quando os elegem como artefatos de desejo. Nesse contexto, a fotografia atua como uma importante ferramenta no processo de inventariar e colecionar, já que nem tudo pode ser retirado do seu lugar de origem ou carregado a tiracolo para ser utilizado em pesquisas e apresentações. Assim, a imagem fotográfica, quando instrumentalizada desta maneira, proporciona uma outra visualidade em um novo espaço e suporte para aquilo que o colecionador/pesquisador se propõe a reconhecer e classificar. É nessa intersecção que Juliana Jacyntho cria o fotolivro “Onde Jaz meu céu estrelado” - premiado em 2020 na Bienal Photovisa LensCulture na Rússia, e citado como um dos 25 melhores fotolivros do ano pela Vogue Itália. Nesta obra, a autora constrói seu próprio inventário de memórias familiares a partir da percepção das transformações nos espaços que remetem à sua infância (fotografados atualmente por ela), e de sua coleção de fotos de família. Dessa forma, propõe uma reflexão visual sobre presenças e ausências, numa narrativa guiada pela potência do mar e pela fragilidade dos azulejos.
O trabalho transita pela subjetividade nebulosa da memória afetiva e a (suposta) objetividade e permanência da fotografia, como estratégia para inventariar diversos azulejos que a autora vem coletando ininterruptamente nos últimos anos, e que nesse livro conduzem a leitura de histórias aparentemente desconexas. O espaço geográfico ao qual remete o livro, Atafona (localizado no município de São João da Barra, no litoral norte fluminense), é onde estão localizadas as memórias dos seus primeiros registros fotográficos, quando Juliana ganhou sua primeira câmera ainda criança na década de 1980. Dessa época, restam imagens de suas férias de verão e da sua família – em especial do seu avô, figura central que conecta as diversas pontas desse inventário, que toma o céu estrelado como metáfora na busca em reconhecer esses lampejos que brilham como vagalumes dispersos numa noite escura. Outro elemento fundamental na construção da publicação é a presença do mar, que desde a década de 1950 avança e corrói as casas construídas na foz do rio Paraíba do Sul. O movimento das ondas atua como fator catalisador no surgimento de novas paisagens: no lugar de casas, sobram partes de suas estruturas, como vergalhões, pedaços de laje e outros indícios das construções destruídas pelo mar. Os azulejos, em seu aspecto de fragilidade e permanência, ganham um lugar fundamental nas páginas do fotolivro, pontuando constantemente a paisagem. Aí se encerram tanto a beleza das espumas das ondas quanto sua força transformadora e sua insistência em avançar sobre as casas. Segundo Benjamin o verdadeiro colecionador cria um sistema, e cada elemento deste sistema torna-se uma “enciclopédia de toda a ciência da época, da paisagem, da indústria, do proprietário do qual provém” (BENJAMIN, 2007, p.239). Acrescenta ainda que o colecionador reúne coisas afins que acabam por estabelecer relações, podendo representar uma sucessão no tempo (p.245). Apesar de reunidos fora do contexto para o qual foram criados, os objetos colecionados ainda mantêm minimamente suas características originais. Contudo, a partir do momento que entram para uma determinada coleção, incorporam novas funções. Nas coleções, há a intenção de conservar objetos marcados pelas decisões no ato de coletar e pelas características das peças selecionadas sob um determinado critério. Desse modo, os objetos afastam-se da utilidade que possuíam anteriormente e, nesse movimento, assumem um novo lugar nesse sistema: É decisivo na arte de colecionar que o objeto seja desligado de todas as suas funções primitivas, a fim de travar a relação mais íntima que se pode imaginar com aquilo que lhe é semelhante. Essa relação é diametralmente oposta à utilidade e situa-se sob a categoria singular da completude. (BENJAMIN, 2007, p. 239). Os objetos escolhidos podem ter mais importância para o colecionador do que dentro de uma lógica histórica ou social mais ampla. Porém, depois de reunidos, passam a desempenhar um papel importante dentro da dinâmica de cada coleção. Nisso fundamenta-se a sua identidade e, a partir daí, toda nova aquisição passa a incorporar este sentido instituído sem, contudo, abandonar suas características primitivas. Há ainda um rastro do que este objeto foi, principalmente porque é possível identificar sua procedência. Mas o que sobressai quando se adentra uma coleção é a nova condição de semelhança do objeto com os outros itens ali guardados. Portanto, quando dizemos que o objeto é abstraído de sua função primeira ao fazer parte de uma coleção, não é no sentido da transformação em um novo objeto; pelo contrário, o valor original dele se mantém e, por este motivo, é valorizado e incorporado à coleção. O afastamento se encontra no abandono de suas funções anteriores e na passagem para objeto de culto, como elemento de posse. Segundo Baudrillard, "todo objeto tem desta forma duas funções: uma que é a de ser utilizado, a outra a de ser possuído" (2000, p. 94). Assim, todos os objetos participam de uma mesma abstração que remete ao colecionador, e “constituem-se, pois, em sistema graças ao qual o indivíduo tenta reconstituir um mundo, uma totalidade privada”. Aqui podemos destacar a coleção de azulejos que Juliana Jacyntho formou ao longo dos últimos anos, que começa na recolha em Atafona e se expande. Ao conectar os primeiros azulejos encontrados em um espaço de memória pessoal com outros adquiridos em cemitérios de azulejos, a autora se coloca tanto como colecionadora quanto realizadora de um inventário desses objetos, criando um sistema próprio de proximidade afetiva sobre esses elementos, que abandonam sua funcionalidade primeira em prol do desejo de possuí-los. E faz uso da fotografia para inventariar todos os fragmentos e peças, e também para facilitar o acesso à sua própria coleção durante o desenvolvimento dos seus estudos. A ideia primordial de um colecionador é possuir um pouco das coisas do mundo que o interessam. Dessa forma, acaba por criar um sistema próprio regido pelos seus gostos, o que, segundo Baudrillard, apresenta-se como uma forma de reconstituir o mundo à sua maneira particular. Quando se descreve a figura do colecionador, surge a ideia caricata de uma pessoa com muito dinheiro, poder e um gosto peculiar, cujo maior empenho em vida é adquirir peças para sua coleção. Alguém que já conquistou muitas coisas e que se dedica a construir um universo particular. É este tipo de colecionador que Georges Perec toma como personagem principal no conto intitulado A Coleção Particular (2005). Nele, o alemão Hermann Raffke deixa seu país para fazer fortuna como cervejeiro em Pittsburgh, nos Estados Unidos no começo do século XX, e resolve dedicar parte de sua fortuna à coleção de obras de arte, principalmente aquelas advindas de movimentos artísticos europeus e da incipiente arte norte-americana.
Para isso, Raffke conta com a ajuda de conhecedores para adquirir algumas peças e com uma colaboração mais próxima do pintor Heinrich Kurz, a quem, em certa altura, após reunir um razoável conjunto de obras, Raffke encomenda a pintura Coleção Particular, na qual se vê um cômodo com mais de cem telas penduradas nas paredes e, sentado à frente delas, um homem que as observa. O personagem sentado é o próprio Raffke, que contempla sua bela coleção, construída ao longo de sua vida. O colecionador chega a exibir essa grande tela em uma exposição ao lado de outras obras que figuravam no próprio quadro. Pouco tempo depois desta mostra, Raffke falece. Em seu testamento encontra-se redigida a instrução de enterrá-lo em um jazigo, sentado em uma cadeira, observando a tela Coleção Particular, em um posição parecida com a que se encontra representada na obra encomendada para si. Seu último desejo, um tanto excêntrico, é realizado, e a obra que representava seu maior êxtase em vida é sepultada junto a ele. O desfecho da história de Raffke, após muitas de suas obras serem vendidas para museus e outros colecionadores por preços razoáveis, traz uma reviravolta. O artista Kurz, na verdade, era seu sobrinho Humbert, quem havia produzido todas as obras da coleção do tio a partir de reproduções de originais, depois de o próprio Raffke ter descoberto que adquirira falsificações em suas primeiras viagens à Europa. Foi então que ele decidiu constituir uma coleção somente com réplicas e, para isso, continuava suas viagens e contatos com conhecedores para legitimar aquilo que estava construindo. A 'pedra angular' da história teria sido a grandiosa tela que fora enterrada com Raffke, e que apresentava a reprodução das obras falsificadas de sua coleção. A magnitude do quadro e do valor de culto acabou por acrescentar valor às obras representadas, apesar de serem todas falsificações. Este conto, ao apresentar uma faceta curiosa de um colecionador fictício, produz uma reflexão sobre o desejo e o empenho da figura essencial para a existência do colecionismo. Outro ponto curioso nesta história é o fato da coleção ser, de certo modo, uma ficção e, durante sua constituição, acabar por instituir uma lógica própria e uma linearidade que se reflete nas escolhas consecutivas do que pode ou não fazer parte da coleção. Cria-se um sistema e um método que, no caso de Raffke, foi a constituição intencional de um conjunto de falsificações de quadros relevantes de diversas escolas da história da arte. Ao ser enterrado com a sua única obra genuína, realizada por encomenda, Perec traz à tona a questão do fetiche do colecionador em levar sua coleção para a eternidade, encontrando-se aí uma outra faceta do colecionismo: a de retirar os objetos de seu tempo próprio e dotá-los de uma nova vivência, de preferência por um longo prazo, mesmo após a morte de quem os reuniu. “A coleção nunca pode existir sem uma sistemática interna. Pois, embora a coleção possa falar para outras pessoas, é sempre antes de tudo um discurso dirigido a si mesmo” (BAUDRILLARD, 1994, p. 22). O objetivo final de uma coleção não é criar uma nova realidade a partir de escolhas sistemáticas, mas tentar reunir 'coisas afins' da realidade segundo uma determinada ordem de importância. Assim, segundo Benjamin, talvez o motivo mais recôndito do colecionador possa ser descrito da seguinte forma: “ele empreende a luta contra a dispersão” (BENJAMIN, 2007, p. 245). Ao se interessar pelos azulejos inicialmente encontrados em Atafona, Juliana passa a buscar outras peças e padrões semelhantes em outras fontes, criando assim um sistema próprio onde o que interessa é a memória contida naqueles elementos. Ao não dar conta de carregar todo o peso que é próprio desse material, ela passa a fotografá-los, Transmutados em imagem, os azulejos passam a ocupar um novo espaço, funcionando como elementos que podem ser editados, deslocados e impressos em outro suporte. A presença intermitente das reproduções fotográficas dos azulejos no livro demonstra sua importância no processo de desenvolvimento do trabalho, e nos deparamos com os azulejos que ora cobrem a paisagem como um post it, ora se impregnam nela num diálogo cromático e sensorial. A formatação do livro propõe uma dinâmica de leitura não convencional e insere uma complexidade durante o folhear das páginas. Formado por dois cadernos costurados sobre uma mesma base, o manuseio da publicação remete a uma escavação arqueológica de memórias que se desvenda página a página, e que se embaralha a cada acesso. Também mimetiza o movimento de sobreposição das ondas que chegam ininterruptamente à praia. Dessa forma, a materialidade do livro revela os conceitos propostos pela autora-colecionadora. Assim como os colecionadores, os fotógrafos também operam na esfera da durabilidade das coisas através da construção de imagens que devem perdurar ao longo do tempo. Ao inventariar memórias íntimas e colecionar azulejos, e consequentemente as imagens desses azulejos, Juliana atua sobre materiais frágeis, tão fáceis de quebrar, mas que carregam memórias muitas vezes intangíveis, assim como as lembranças que despertaram a formatação desse fotolivro. Uma catarse de uma fratura exposta com a perda e ausência do avô, que passa pela reunião de materiais afetivos representados por fragmentos oriundos da constante ação do mar que destrói as casas, mas que é também lugar de renascimento. Um estado de impermanência que encontra nas páginas do livro uma calmaria transitória. Guilherme Tosetto Coordenador e professor no curso de Fotografia do Centro Univ. Belas Artes de São Paulo. _____________________ REFERÊNCIAS BAUDRILLARD, Jean. (1994) "The system of Collecting". In The culture of collecting. CARDINAL, Roger (ed.). Cambridge: Harvard University Press. BAUDRILLARD, Jean. (2000) O sistema dos objetos. 4ª ed. São Paulo: Perspectiva. BENJAMIN, Walter. (2012). “Eduard Fuchs, Colecionador e Historiador”. In O anjo da história. São Paulo: Autêntica. BENJAMIN, Walter. (2007). Passagens. Belo Horizonte: Editora UFMG; São Paulo: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo. BENJAMIN, Walter. (1987). “Desempacotando minha biblioteca: um discurso sobre o colecionador”. In Rua de Mão Única. São Paulo: Brasiliense. PEREC, Georges. (2005). A coleção particular. São Paulo: Cosac Naify. Citação TOSETTO, Guilherme. Inventariar memórias e colecionar imagens em "Onde jaz meu céu estrelado". Base de Dados de Livros de Fotografia, 2020. Disponível em: <https://livrosdefotografia.org/artigos/@id/20683>. Acesso em: [dia] [mês] [ano].
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